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A velha cinza


Nunca entendi. Caminhava numa rua dessas de capital com tons interioranos, feita de pedras e buracos e pessoas que comem galinhas que comem esgoto. Mas era noite, e as pedras não se viam, e os buracos se escondiam, como armadilhas, e era hora de novela, as pessoas estavam em sofás e as galinhas em pratos.
Eu ia apressada com a bíblia na mão, como toda boa cristã daquela corrente que se vai à igreja não só aos domingos, pois era quarta ou quinta-feira, quando vislumbrei uma senhora de cabelos cinza e roupa escura ou cinza, encostada num muro que parecia cinza, o que não posso afirmar devido ao bom governo de minha cidade, e ela tocava uma gaita, (nunca entendi) era aquela canção Noite feliz. Não era natal.
Segui os próximos dez minutos de minha andança pensando no acontecido: uma velha –sozinha- no fim de uma rua- tocando Noite Feliz- numa gaita, e tudo muito cinza. Não gosto de cinza. E nesse dia ele estava... simpático. Esquisito. Mas simpático!
Depois esqueci daquela velha que de tão perto do muro parecia parte do dele. Talvez tenha visto outra esquisitice pelo caminho, ou lembrei-me que tinha esquecido alguma coisa. Quando entrei na igreja a velha senhora já havia morrido.
Na minha mente, claro! Porque para o meu espanto uma hora e meia depois ela continuava lá,  de pé encostada no muro que talvez fosse cinza e ainda tocando Noite Feliz. Nunca entendi. Primeiro pensei: poxa, ela sabe tocar gaita, e eu apanhando para aprender um fá no violão. Depois pensei na irresponsabilidade dos seus de a deixarem ali, talvez nem soubessem... mas já era tarde... deveriam saber...
E por que Noite Feliz? Passar ali duas vezes e ouvir a mesma canção... repertório  escasso assim? Num céu quase sem estrelas, numa rua quase sem luz, quase sem ninguém. Noite Feliz tocava ao acaso? Achei que não, que havia motivo. Nunca entendi...
Não era nem natal, como já disse, nem dezembro ou final de novembro. Nem copa do mundo, (porque é quase como natal quando vencemos). Nunca entendi. Passei pelo mesmo lugar outras quartas ou quintas-feiras e ela não estava lá, e passei outros dias e talvez ela até estivesse, mas sem sua escuridão e sua gaita era irreconhecível.
Fiquei com aquela velha cinza na minha mente. Achei a coisa mais triste do mundo tocando Noite Feliz, e  achei a velha mais sábia tocando gaita, e mais bela do mundo tocando Noite Feliz, e mais misteriosa... tocando gaita. 
Tanto que já faz anos que isto me aconteceu, e hoje que escrevo. A  lembrança de uma velha desmazeladamente cinza pode ser mais forte que a minha valente preguiça. Porque faz tempos e rascunhos mentais que quero escrever e perco para a inércia. Mas se esta lembrança vingou é porque aprendi.
Nunca entendi: Aprendi que em ruas de capitais com tons interioranos, feitas de pedras e buracos, e pessoas que comem galinhas que comem esgotos, há mais do que o previsível. Há de vez em quando uma pessoa ou uma história, ou os dois, que surpreendem em dias comuns, com canções comuns em ruas comuns.
Nunca entendi. Mas achei a solidão mais bela do mundo!

1 comentários:

ananda mayi 18 de julho de 2012 às 17:26  

o meu segundo parágrafo é um tanto arrogante, perdoe-me quem se ofendeu, hesitei em colocá-lo.. mas pensei... isso é escrita, eu não sou arrogante assim não, é sério... se me conhece , sabe! bju

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